Suspeita de direcionamento trava pregão Linux na Dataprev

A 2ª Vara Cível da Justiça Federal, em Brasília, mandou travar no último dia 15 de dezembro, os efeitos resultantes de um pregão eletrônico para aquisição de software Linux (adjudicação, homologação e contratação do vencedor), realizado pela Dataprev no dia 28 de novembro. Há fortes indícios de que houve direcionamento nesta modalidade de licitação, uma vez que todas as empresas que disputaram o pregão 374/2014 são revendas da Red Hat.

Representantes de outras marcas no ambiente Linux se insurgiram contra o modelo adotado pela Dataprev e essa batalha comercial – cujo total do serviço a ser pago ao vencedor será de R$ 15,3 milhões – terá desdobramentos futuros no movimento em defesa do uso do software de código aberto. Para justificar a aquisição, a estatal se valeu de argumentos bastante similares aos que compra em serviços de empresas de código proprietário.

No seu despacho, o juiz Charles de Moraes deixa claro não ter dúvidas quanto ao direcionamento do pregão. “O direcionamento é evidente pela quantidade de fornecedores e marcas, do tipo de equipamento (sic) objeto da licitação existentes no mercado”, declarou, acrescentando que determinava a paralisação da contratação pela estatal.

A Ação nº 100015867.2014.4.01.3400, foi movida pela Massis Informática LTDA que, dada as características do edital, se viu impedida de participar do pregão. Para a empresa, o edital da Dataprev, ao defender a exigência de marca sem a devida justificativa técnica, seria ilegal. A Massis entende que a licitação feriu os “princípios inerentes às licitações públicas previstas na Lei 8.666, além de requisitos constitucionais da Administração Pública: Impessoalidade, da livre concorrência, da igualdade/isonomia e da proporcionalidade”.

Exclusividade questionada

O juiz da 2ª Vara Charles de Moraes, sustentou em seu despacho, que o edital do pregão eletrônico demonstrou a necessidade da Dataprev por sistemas Linux Enterprise. Mas, a seu ver, não teria apresentado qualquer justificativa para demonstrar a necessidade exclusiva do fabricante Red Hat. Para Charles de Moraes, a Dataprev ao optar pela padronização de produtos deveria ter apresentado uma justificativa “respaldada em comprovação inequívoca de ordem técnica, com estudos, laudos, perícias e pareceres” que pudessem demonstrar as vantagens econômicas e o interesse da administração.

“Não vislumbro a existência de justificativa nos moldes do exigido. (…) As especificações contidas no edital demonstram que a necessidade da Dataprev é de Sistemas Linux Enterprise, não apresentando nenhuma necessidade exclusiva do fabricante Red Hat”, afirmou. A Dataprev, procurada pelo portal Convergência Digital, não quis comentar a decisão, os argumentos envolvidos ou as próprias especificações previstas no edital 374/2014. Segundo comunicou a estatal, como não foi ainda notificada da decisão da Justiça Federal, o processo de licitação sequer foi suspenso e, pelo menos até esta quarta, 17/12, continuava correndo normalmente.

Preço ou habilidade técnica?

De fato, olhando pela lente fria da Lei 8.666, o que a Dataprev teria feito foi quase um procedimento de uma “carta-convite”, onde apenas revendas com notória especialização em Red Hat compareceram ao certame, como se no mercado não houvesse mais ninguém com a mesma habilitação técnica, o que vem gerando controvérsias. O uso do pregão eletrônico teria sido apenas um pano de fundo para demonstrar, talvez, economicidade e transparência à compra do serviço, sendo até questionável o resultado no comparativo com outras licitações.

O portal Convergência Digital pesquisou outras Atas de Registro de Preços e as comparou com os resultados do pregão 374/2014 da Dataprev. Em princípio, este certame teve três itens licitados e a estatal obteve uma redução de 18% no preço final, em relação ao que foi estimado em edital. Licitação bastante similar ao da Dataprev, realizada pela Prefeitura Municipal de São Paulo alcançou uma redução de 75% no valor original estipulado pelo edital. Uma empresa foi adjudicada ao se oferecer para o serviço por R$ 759 mil, quando o preço estimado pelos técnicos da prefeitura foi de R$ 3,1 milhões.

O mesmo percentual de ganho para o demandante (75%) ocorreu no Conselho Nacional de Justiça, que estimou em R$ 584,2 mil o valor os serviços através de subscrições Linux e acabou conseguindo adjudicar para um fornecedor pelo valor de R$ 129,9 mil.

É óbvio que cada licitação tem peculiaridades como, quantidade de itens e licenças para uso (embora no ambiente de código aberto tratar a compra por ‘licença de uso’ possa parecer discrepante), tempo de execução em cima da máquina, suporte técnico, etc. No caso da Dataprev também deve ser levado em conta que ela não é do tamanho de uma prefeitura, mesmo sendo a de São Paulo e, muito menos, o Conselho Nacional de Justiça, considerando o tamanho do seu processamento de dados.

Padrões e modelos de compras

Essa questão tornou-se uma discussão secundária, em virtude desta compra guardar muita similaridade com o que sempre foi praticado no mercado proprietário (escolha dos mesmos concorrentes de sempre, oferecendo os mesmos serviços, que no final o preço seria o único fator preponderante para a vitória de determinado fornecedor). Assim mesmo fica a pergunta: este será o “modelo Linux” de vendas do futuro, depois de tanto criticarem o “modelo proprietário”, no passado?

Segundo especialistas consultados pelo portal Convergência Digital, é praxe o entendimento de áreas de tecnologia da informação que a performance de certas aplicações varia conforme o uso desta ou daquela distribuição Linux. Mas como ressaltou o juiz da 2a Vara Cível, “as especificações contidas no edital não apresenta[m] nenhuma necessidade exclusiva do fabricante Red Hat”.

Na prática, embora o Linux seja “livre”, há uma série de diferentes distribuidores que acoplam ao núcleo Linux aplicativos que não são necessariamente software livre. Isso inclui algumas grandes empresas, como IBM, Oracle, Canonical (Ubuntu) e, no caso específico, uma disputa entre revendedores de distribuições Red Hat e SUSE, versão alemã que foi inicialmente comprada pela americana Novell e agora controlada pela americana Micro-Focus, num consórcio de empresas.

Não por menos, argumentos de compatibilidade são naturais. Ao oferecer sua própria distribuição, a Oracle afirma, por exemplo, que “qualquer suporte RHEL [Red Hat Enterprise Linux], o Oracle Linux também suporta”. Ou, ainda, quando na descrição de seu produto que a distribuição suporta também SUSE (SLES) ou Asian Linux (Asianux).

“Acho que este é um bom momento para a Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI) entrar nessa discussão e estudar um padrão, que possa ser transformado no futuro em uma norma, num modelo de compras para soluções de código aberto”, destacou o novo presidente da Associação Software Livre, Sady Jaques.

Para ele, o caso Dataprev é ideal para que todo o setor de sofwtare livre comece a pensar numa fórmula de estruturação do seu mercado, guardando as suas peculiaridades em relação ao mercado proprietário, que vise poder competir em pé de igualdade, respeitando a Lei de Licitações.

Juiz acertou, mas o foco pode ser outro

“Sim, não há a menor dúvida de que estão direcionando a licitação e eu daria menção honrosa para esse juiz que teve o discernimento de separar as coisas e tomar essa decisão”, disse o analista Anahuac de Paula Gil, usuário Linux desde 1996 e desenvolvedor nessa plataforma desde 2000.

Para ele, só sendo “bastante flexível”, talvez se consiga separar o software livre em duas categorias: Enterprise e não Enterprise. Segundo ele, do ponto de vista tecnológico um Red Hat ou um Debian seriam similares ou compatíveis.

Entretanto, a diferença entre marcas ou que poderia definir um software livre na categoria “Enterprise” ou não, seria a estrutura empresarial montada para dar a cobertura técnica necessária ao cliente. Para o analista, esta seria hoje a principal diferença do Red Hat para as demais marcas, pois ela tem se mostrado focada no suporte cliente corporativo e não no usuário final.

“Tem um grupo de consultores regiamente pagos para diariamente prestar assessoria direta às corporações, em ambientes enormes como é o caso da Dataprev. Não dá para pedir que uma consultoria pequena do interior de São Paulo esteja capacitada, do ponto de vista humano, estrutural e não técnico, para prestar serviços para uma empresa do tamanho de uma Dataprev”, explicou Anahuac de Paula Gil.

Para ele tal preferência dos gestores de compras da Dataprev talvez se explique por essa razão, pelo fato de que estão habituados a ter o apoio de técnicos dentro de sua infraestrutura, num ambiente de missão crítica, que não pode parar em nenhuma hipótese, sob pena de prejudicar o aposentado e pensionista brasileiro. “É o negócio dela (Red Hat), só faz isso, se você ou eu quisermos suporte técnico dela, não seremos atendidos”, explicou.

Mesmo assim, Anahuac afirmou que essa questão não explica e nem invalida a decisão judicial, pois entende que a Dataprev errou ao realizar o seu pregão, porque teria todas as condições de inabilitar qualquer concorrente que não estivesse à sua altura para prestar tais serviços.

“Não é técnico, não há nada que um Red Hat faça que um Debian não faça. O que está em discussão é a capacidade para atender plenamente um ambiente de missão crítica. Onde a empresa pecou na minha opinião? Foi quando tentou usar a mesma receita que se usa para comprar software prioprietário, direcionado, e que ninguém reclama”, disparou.

Dependência Tecnológica

Para o professor Sérgio Amadeu da Silveira, ex-presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação e militante do software livre, a decisão da Dataprev também pode ser explicada pelo foco da Red Hat prestar serviços ao mercado corporativo. Do ponto de vista técnico ele entende que não há diferenças a serem discutidas que possam indicar a preferência da estatal. Mas do ponto de vista empresarial, sim, a Red Hat tem optado pelas grandes corporações.

Entretanto ele alertou que quando uma empresa do porte da Dataprev decide somente buscar soluções de um único fornecedor, isso poderá trazer efeitos nocivos para este mercado no futuro. Sem concorrentes no âmbito corporativo, o que impedirá a Red Hat estabelecer o seu preço e a sua maneira de prestar o serviço criando, com isso, uma dependência tecnológica para o cliente?

Amadeu lembra que até bem pouco tempo esse argumento foi utilizado pelo próprio governo para se livrar de alguns fornecedores inconvenientes no mercado proprietário. Ele levanta essa questão para uma futura discussão: esse modelo não seria, agora, uma repetição do mesmo erro ocorrido no passado, no momento em que se quer estabelecer um novo mercado para as empresas de código aberto?

Sinuca política x administrativa

A decisão judicial impede a Dataprev de assinar imediatamente o contrato com uma das revendas Red Hat, ainda há um longo caminho jurídico a ser traçado, até que haja o julgamento final do processo. Os desdobramentos políticos e administrativos para a direção da empresa estatal ocorrerão de qualquer forma nesse meio tempo.

Resta saber qual a decisão será a mais conveniente para a direção ou para os interesses da Dataprev. Uma alternativa seria perder tempo com essa batalha jurídica, mantendo contrato emergencial até que possa assinar um novo com uma revenda Red Hat. O risco e o desgaste neste caso é perder o tempo e no final ter de rever todo o seu processo de compras por ordem dos juízes.

Outra alternativa seria desistir imediatamente da licitação e reabrir outra, desta vez, seguindo os parâmetros de isonomia entre as empresas do mercado conforme decisão liminar. Ocorre que, cancelando o pregão agora por causa dessa decisão judicial, mesmo que liminar, isso imporá à direção da estatal uma confissão de culpa que não foi claramente esclarecida. Ao mesmo tempo se forma uma meia “jurisprudência” no setor governamental para futuras licitações, ainda que o Judiciário nem chegue a julguar esse processo até o fim, devido à perda de objeto após o cancelamento do pregão.

Caberá à direção da Dataprev explicar qual medida irá tomar: a menos prejudicial para ela do ponto de vista político ou a menos dolorosa para a imagem da empresa no seu atendimento ao cidadão, do ponto de vista administrativo.

Texto de Luiz Queiroz e Luis Osvaldo Grossmann
Fonte: Convergência Digital

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